Os pontas-de-lança não ouvem Mozart
Retirado de: Luís Freitas Lobo (www.expresso.pt)
0:00 Quarta-feira, 17 de Fev de 2010
Pressão. Pode um campeonato ser decidido num penálti? Uma boa equipa é uma sucessão de boas respostas a diferentes estímulos competitivos.
Um penálti no último minuto. Pode a decisão de um campeonato ser, no final, vista a partir de um simples episódio como este, para, num ápice, resumir uma história tão longa? Faltam alguns meses para saber a resposta. Será quando se resgatar a imagem de Cardozo antes do penálti em Setúbal. O olhar tão concentrado como assustado, pensando na bola na rede ou nas outras vezes que falhou, e, de repente, sem estratégia de colocação do remate, sai uma bomba, bang! na barra. Dois pontos perdidos e o primeiro lugar de novo aberto aos adversários. Trinta jogos são muitos jogos mas, no futebol, cada jogo passa muito por dominar os diferentes estímulos competitivos que uma época longa esconde.
Esta teoria dos estímulos faz recordar uma história que ouvi há tempos, contada por Mia Couto. Falava de uma viagem de carro com um colega, em Maputo. Foi então que, ao atravessar uma zona inóspita, ouvindo música clássica, viram na berma da estrada pessoas a acenar, pedindo-lhes para parar. Pensavam que podiam querer ajuda... mas não, apenas queriam saber se tinham... música. Estavam numa festa de casamento, não tinham nenhum aparelho, rádio ou o que fosse. Por isso, não tinham música e queriam dançar. Os viajantes responderam que sim, mas, "nós aqui no carro só temos música clássica!". Sem se importarem com isso insistiram para os seguir. Foram, pararam o carro à porta da festa, abriram as portas, puseram o volume no máximo e, contam, assistiram ao primeiro baile de casamento ao som de Mozart!
Acho esta história divinal. Nela está tudo que a vida pode esconder. Um jogo de futebol (e uma equipa) também esconde muitos sentimentos. É, no fundo, também muito feito de estímulos. No fim, deve transmitir mais do que dizem as estatísticas de remates e posse de bola. Como uma música deve ser mais do que a sua descrição na pauta. O Benfica teve, em semana e meia, quatro estímulos competitivos diferentes. No primeiro (Guimarães) ganhou para se manter colado ao líder Braga. No segundo (Leiria) ganhou para lhe fugir três pontos. No terceiro (Setúbal), olhando de cima, descomprimiu a mente e deixou a solução cair num penálti. No quarto (Sporting), com o rival histórico, noutra competição, esse mesmo jogador fez, também no último minuto, a uma distância de 40 metros o que antes não fizera a 11. O que foi mudando (os jogadores foram quase os mesmos) de um jogo para o outro?
Numa definição simples: uma boa equipa, num campeonato longo, é uma sucessão de boas respostas (diferentes reacções) a diferentes estímulos competitivos. Porque o futebol não é matemática. Desde logo, porque cada adversário joga de forma muito distinta. Os primeiros 15, 20 minutos são decisivos para marcar uma posição (afirmação de autoridade) no jogo. Quando esse primeiro momento se perde, dificilmente o consegue depois com a mesma eficácia. Aumentam os riscos e a equipa tende a perder coerência de jogo. Nesse ponto, a tentação primária mesmo de uma boa equipa colectiva é tentar fazer chegar o mais rápido possível a bola ao jogador que melhor pode resolver o jogo individualmente. No Benfica, em Setúbal, sentia-se isso como se Di Maria tivesse um íman nas botas que atraia a bola. Mas, nem numa grande equipa a felicidade é total.
Uma equipa, ao longo da época, é, no fundo, como um viajante sozinho numa longa estrada que passa pelos locais mais distintos. Conseguir escutar Mozart no local mais inóspito, onde os estímulos parecem impossíveis, é o segredo para evitar os reflexos mais primários que, quase sempre, nos afastam da felicidade total.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário