O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A criatividade: O que nos diz Marisa Gomes

O texto abaixo ee de autoria da professora Marisa Gomes, que trabalha nas categorias de base do FC Porto, o texto foi encontrando no blog diario-de-treinador.blogspot.com

"A capacidade de improvisar, de gerar novas formas de pensar, de agir e de ultrapassar os adversários (individual ou interactivamente) é algo que nos emociona. É o que nos liga ao jogo, na sua expectativa, na superação, na envolvência e emotividade que nos faz sentir dentro do próprio jogo. No entanto, esta emocionalidade está reduzida no futebol actual. Os motivos são vários, mas o fundamental é fácil e evidente: pobreza na criatividade das equipas e jogadores. Justificam-se com a ordem «táctica» e com os comportamentos defensivos, mas não é verdade. A falta de criatividade, da genialidade é a causa fundamental dessa pobreza. O importante agora é perceber porque existe falta dessa criatividade. Simples: a formação, a educação e cultura que estamos a desenvolver.
Apesar de ser um aspecto amplo e aparentemente difuso, é um dado concreto e com uma origem objectiva cujos culpados somos todos nós, adultos. Sem excepção. Reconhecemos e valorizamos cultural e socialmente os indivíduos que criam, geram e motivam novos conceitos, novas perspectivas e uma maior variabilidade naquilo que já existe. O que acontece na arquitectura, na arte, nos escritores, nos estilistas, nos treinadores e nos jogadores. No entanto, nada fazemos para estimular e desenvolver esta apetência. As regras, as normas e rotinas surgem cada vez mais cedo e em todas as dimensões de uma criança. Tornam-se numa constante. E por isso acho que devemos enaltecer e reconhecer cada vez mais os que apesar disso não perdem a sua originalidade e criatividade. A nossa educação comete um erro na sua concepção: estreita formas e caminhos quando deve fornecer temas para que os trilhos possam ser desenvolvidos, diversificados e geradores de uma formação individual. O que não acontece: vestem-se cada vez mais iguais (sem falar dos uniformes), as casas são cada vez mais semelhantes, as rotinas são partilhadas e vividas desde o berçário, o trabalho e programas escolares são cada vez mais gerais e automáticos. Então, se não se gera a criatividade como pode ela aparecer? Valorizamos os meninos bem comportados, com comportamentos e rotinas que orgulham os pais, os trabalhadores, os que cumprem as expectativas e que facilmente são controlados pelos pais, professores, auxiliares, treinadores e jornalistas. No entanto, adoramos as coisas novas, aquelas que vão para além daquilo que esperamos. Mas o que fazemos para que isso aconteça? Damos espaço para que as crianças interajam com outras crianças sem a supervisão dos adultos, permitimos que brinquem, que joguem à bola em casa, na escola ou jardins? Controlamos os espaços, o tempo e uniformizamos o que fazem. Na escola, em casa, no treino, no futebol e no jogo.
A formação de um jogador criativo não é algo divino. Depende das suas capacidades, características, mas sobretudo daquilo que adquire ao longo dos anos de formação. O potencial criativo pode ser e deve ser estimulado e desenvolvido. A ausência deste aspecto tem sido determinante como facilmente reconhecemos na pobreza criativa que existe num jogo e na hipervalorização que jogadores com essa capacidade têm no mercado actual. Mas convenhamos, como surgem esses jogadores? Espontaneamente? Não me parece… Senão a intervenção divina seria mais ampla e não haveria uma diminuição nestes últimos tempo. A não ser que seja também a crise…
A formação e os contextos de treino e competição, em todos os seus escalões, devem reflectir essa vontade de desenvolver jogadores criativos. E para isso, temos que pensar no que temos feito, nas necessidades dos artistas e nas condições com que procuram a sua genialidade. Analisando a qualidade dos jogadores criativos percebemos que a sua maior virtude é a sua capacidade de inovar e portanto, associamos uma invariável: a variabilidade. Como se mexe, como decide, como toca na bola, como interage e como joga. No entanto, que contextos promovemos no treino, na formação para que haja criatividade? As cores dominantes no treino são cada vez mais uniformes ou seja, existe uma esterilização que em nada favorece aquilo que queremos! As cores das camisolas e equipamentos são as mesmas (nalguns até as chuteiras!!), os cones são muito coloridos e limitam os espaços religiosamente, os exercícios são espaços nos quais os jogadores têm que percorrer caminhos traçados. Assim, como podemos querer que os jogadores inventem, criem, se divirtam e sejam inovadores? Esta questão leva-nos para um contexto ideal onde todos reconhecemos ter todas as coisas importantes: o futebol de rua. No entanto, mais que o valorizar e reconhecer as saudades que nos provoca vejamos o que o futebol de rua tem que o torna tão especial.
Para começar, a emoção. O prazer que o jogar na rua é uma componente decisiva para a sua importância. Os jogadores iam por livre vontade (alguns fugindo até) e sobretudo, iam sozinhos porque adoravam jogar. Perdendo a noção das horas, sem ter percepção de cansaço e com uma alegria contagiante, o futebol de rua manifesta a sua pureza.
Num contexto improvisado, apenas com uma bola (com maior ou menor qualidade), a junção de miúdos para jogar resultava do prazer que sentiam a fazê-lo. As balizas, os limites do campo eram definidas no início e reconhecidas a «olhómetro» por todos durante o jogo. As equipas formavam-se de acordo com as características dos jogadores, os melhores e os piores distribuíam-se numa concordância que a justiça infantil compreendia e aceitava. No caso de não ser justo no decorrer do jogo, ajustava-se para que pudesse ser competitivo. O prazer da conquista resultava disso. A ausência de adultos a dizer como deviam jogar fazia com que resolvessem os seus problemas de acordo com as necessidades de superação individual e colectiva. A variabilidade dos jogos tornava-os aliciantes porque as crianças não gostam das coisas mecânicas e da mesma maneira, alterando as equipas, procurando serem melhores, jogando de corpo e alma. E por fim, davam primazia ao jogo. Queriam era jogar! Não se atiravam para o chão (era duro!), não permaneciam à espera do protagonismo que a paragem no jogo provoca com a entrada do «massagista», não discutiam se ia fora, queriam era ganhar jogando, agindo, mexendo-se de forma pura e em diferentes contextos que os faziam crescer de acordo com a importância do verdadeiro jogo comporta. A simplicidade da genialidade. SEM COLETES, SEM CONES, SEM ÁRBITRO, SEM O «COMANDO» TÉCNICO, COM camisolas/ calções/calças/sapatilhas DIFERENTES, DURANTE HORAS SEGUIDAS!!
Então, será que o treino tem futebol de rua?? Senão, não esperemos que a criatividade surja por geração espontânea porque Darwin já provou há séculos que Lamarck estava errado…"

2 comentários:

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