O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

sábado, 30 de janeiro de 2010

O futebol requisitando uma funcionalidade ancestral, dai um fenomeno aparentemente ContraNatura

"Sempre nos foi dificil admitir esse parentesco, como sabe. A origem animal do homem choca com tal vioencia contra as conviccoes filosoficas ou religiosas que recebe ainda numerosas reticencias..." (Reeves et al., 2006, pp. 97).

Enquanto especie os humanos, pelo percurso evolutivo adotado divergiram de forma significativa das demais, incluindo as que lhes sao mais proximas, como a generalidade dos primatas. No ponto anterior deste trabalho, procuramos explicitar que a filogenese humana levou a secundarizacao, em termos funcionais, dos pes, uma tendencia contraposta pela emancipacao das das maos. "As maos, nos bracos, servem para manejar e manipular, mas so de forma bastante limitada servem para nos agarrarmos ao trepar. Uma caracteristica especial das maos ee o polegar separado dos dedos, o qual lhe possibilita uma preensao firme. Mais do que isso: com o auxilio do polegar e de um dedo (indicador), podemos segurar objetos com extraordinaria delicadeza.

Atuam como uma pinca. Com o dedo grande do pe nao se consegue fazer o mesmo. Nao esta numa posicao oposta aos restantes dedos e, mesmo no caso de uma grande destreza com os dedos dos pes, nao somos capazes de fazer mais do que agarrar simplesmente objetos" (Reichholf, 1996, pp. 167).

A diferenciacao das maos e dos pes, em termos funcionais e estruturais revelou-se determinante na adocao de novas formas comportamentais e manifestacoes culturais, tendo simultaneamente nos permitido divergir em termos evolutivos, os nossos antepassados mais proximos, que como procuraremos evidenciar, relativamente as maos e aos pes apresentam uma diferenciacao muito menos evidente. Torna-se pertinente neste ponto, tecer algumas consideracoes acerca da taxionomia de alguns organismos vivos aparentados com a especie humana, para que deste modo possamos perceber de onde vimos, e para onde poderemos ir.


"Os primatas surgiram ha cerca de 65 milhoes de anos, antes do desaparecimento dos dinossauros. Desde essa altura tem divergido em lemures, macacos e simios, e estes ultimos em dezenas de especies sobreviventes, incluindo homens, chimpanzes e gorilas. Os chimpanzes separaram-se da nossa linhagem ha aproximadamente 5 milhoes de anos, sendo talvez o ultimo ancestral comum a humanos e gorilas 2 milhoes de anos mais novos: (Jones, 2006, pp. 204).

No que diz respeito aos hominoides atuais, chimpanzes, gorilas e orangotangos, apresentando um aspecto semelhante, foram tradicionalmente agrupados na mesma familia, a dos pongideos, onde tambem era por vezes incluidos os giboes, apesar de alguns autores os colocarem na sua propria familia, a dos hilobatideos, sendo que a especie humana era a unica da sua familia, a dos hominideos (Arsuaga 2007). De acordo com Reeves et al. (2006) podemos considerar, que o homem provem de uma especie que foi o antepassado comum de duas linhagens, a dos macacos superiores africanos e a dos pre-humanos. "Os humanos, os chimpanzes e os gorilas tem um antepassado comum, uma especie de avo" (Arsuaga, 2007, pp. 34).

Contudo, importa advertir que as proximidades filogeneticas, estabelecidas pelo homem com os varios hominoides, nao sao identicas para todas as especies, encontrando-se deste modo, mais aparentado com umas do que outras. Para Dunbar (2006, pp. 28) o ultimo antepassado comum entre os humanos e os chimpanzes ee, a escala de tempo a que nos temos de reportar nestas problematicas, relativamente recente, entre cinco a sete milhoes de anos, para este autor, a conclusao mais espantosa da investigacao relativa a descendencia humana, foi a de compromar que os humanos se encontram intimamente aparentados com os chimpanzes do que com os gorilas ou os orangotangos, como refere, "tao intima era a relacao entre humanos e chimpanzes (...) que parecia que, na realidade seriamos apenas chimpanzes que tinham enlouquecido. Longe de serem nossos primos, os chimpanzes sao na realidade - taxonomicamente falando - a nossa especie-irma." De acordo com Jacquard (1995), importa contudo atender ao fato de que nao ee inteiramente correto, referir que o homem descende dos macacos, mas sim que o correto, sera afirmar que o homem e o macaco descendem de antepassados comuns.

A proximidade filogenetica entre humanos e os restantes primatas, levou a considerar-se de uma forma generica, que "a especie Homo sapiens - evoluiu a partir dos macacos. A sua afirmacao constitui atualmente uma verdade universal aceite, exceto para aqueles que estao determinados a iludirem-se a si proprios" (Jones, 2006, pp. 10). Torna-se contudo pertinente advertir, que o homem "so ee um macaco, no sentido lato, por uma questao de ordenacao na classificacao animal: a sua especificidade ee precisamente ter ultrapassado esta condicao simples." (Reeves et al., 2006, pp. 98).

Como temos vindo a sugerir, a possibilidade de ultrapassar essa "condicao simples" foi, em muito devida as alteracoes verificadas na especie humana que conduziram a diferenciacao de maos e pes. Se efetuarmos, uma analise as especies evolutivamente mais aparentadas com a especie humana, sobressaio o fato de nestas, contrariamente ao que sucede na nossa especie, se observar uma funcionalidade praticamente indiferenciada entre trem inferior e superior. A libertacao do trem superior conduziu o homem a uma evolucao e funcionalidade diferenciada, ao ponto de se constituir como a unica especie pertencente a familia dos hominideos (Arsuaga, 2007).

"Naturalmente, tudo isto nos ee familiar e nao justificaria a pergunta sobre o significado destas diferencas para a historia filogenetica do homem, se os Antropoides nao tivessem os pes semelhantes as maos (...) Quando fazemos comparacoes simples, e nao criticas, com os Antropoides, os nossos parentes mais proximos, tudo se torna claro. Neles, os pes sao semelhantes as maos: possuem tambem dedos grandes e oponiveis nos pes, podendo, por isso, agarrar os ramos das arvores quer com as maos quer com os pes. As maos e os pes dos Antropoides sao, em geral muito mais parecidos entre si do que os do Homem: (Reichholf, 1996, pp. 168).

De acordo com Dunbar (2006) as obvias diferencas fisicas a este nivel, entre o homem e os restantes primatas, dotaram-nos de uma coordenacao manipulativa muito grande. Nao sendo por isso de admirar, que a capacidade dos chimpanzes para fabricarem utensilios, se encontre mais limitada, uma vez que tudo parece indiciar que os bracos e maos nao se encontram devidamente coordenados para este tipo de atividade, como sugere, Arsuaga (2007), que acrescenta, ser um fato, que nao revela falta de merito uma vez que, sao muito mais habeis com os pes do que os humanos. Conforme esclarece J. L. Massada (2001, pp. 167) "entre os primatas, a acao de garra mostra-se plenamente desenvolvida na mao e no pe, fato que nao se observa no Homo Sapiens ao nivel do pe." Em conformidade Will Harcourt-Smith (in, Ackerman,2006) salienta que de entre os primatas somos a unica especie, que abdicou do pe como orgao dominantemente vocacionado para agarrar objetos. Nos primatas, como os gorilas ou os chimpanzes, verificou-se a perpetuacao do pe preensil, a marcha vertical equilibrada observa-se numa forma ainda rudimentar, nestes as patas anteriores sao na verdade bracos, utilizados para funcoes proprias das maos, como agarrar e suspenderem-se em arvores, mas nao para correr, contrariamente ao que sucedeu no homem, em que o pe apto para a marcha bipede e corrida, se desenvolveu de forma muitissimo mais significativa, o mesmo nao sucedendo com as maos (Reichholf, 1996).

Como afirma Ackerman (2006, pp. 59) "o pe do chimpanze ee um atributo espantosamente util e versatil, essencial para trepar as arvores e capaz de tanto movimento e manipulacao como a sua mao. Em contraste, o pe humano ee um orgao hiperespecializado, concebido para (...) impulsionar o corpo em frente e absorver o choque resultante desse movimento." Acrescentando, que "o bipedismo pode ter libertado as maos, mas manietou os pes." Por este motivo aludimos no titulo do ponto anterior, para o fato das bases anatomicas da hominizacao nos terem atado de pes, mas nao de maos. A mesma autora refere ainda, que a proficiencia revelada pelos pes de um chimpanze resulta, do fato de apresentarem dedos oponiveis. Uma caracteristica que como salienta Reichholf (1996), nao se verifica no pe humano, sendo neste especie apenas evidente ao nivel das maos, que como realca, apresentam como caracteristica especial, o fato do polegar se encontrar separado dos restantes dedos, possibilitando deste modo, uma preensao firme a inda, com o auxilio do dedo indicador, segurar objetos com enorme delicadeza, efetuando acoes identicas a de uma pinca. Tambem J. L. Massada (2001, pp. 167) realca o fato evidenciado pelos autores anteriores, ao afirmar que "ao contrario do homem, a grande maioria dos primatas mostra uma grande mobilidade do primeiro dedo do pe, enquanto na mao se verifica precisamente o contrario."

As investigacoes no ambito da Paleontologia indicam que no passado, a especie humana apresentava, um pe semelhante aquele que ee ainda hoje visivel na generalidade dos primatas. Ou seja, estruturalmente encontrava-se menos diferenciado das maos. Ron Clarke (in, Johnson, 2007) com base na analise de registos fosseis dos nossos antepassados, salienta que no pe, o dedo grande, se assemelhava a um polegar, que como tal se podia afastar ligeiramente dos restantes dedos, uma caracteristica que teria favorecido uma hipotetica vida arboricola, que com a adocao do bipedismo se eclipsou nesta especie.

Consideramos, que a presente incursao ao percurso filogenetico, e as relacoes de proximidade da nossa especie com outras que se nos encontram aparentadas, se reveste de grande pertinencia para um trabalho de investigacao cuja problematica ee, o EnsinoAprendizagem do Futebol. Esta abordagem justifica-se, uma vez que permite denunciar e inferir acerca do conflito que ee, pelo menos em parte, a nivel evolutivo a pratica de futebol. Para a compreensao desta nossa assuncao, devemos ter em consideracao que o futebol requisita e impoem, inclusive em termos regulamentares bastante constrangimentos a utilizacao das maos e dos membros superiores. Note-se que a utilizacao deliberada destas estruturas, ee apenas permitida a um jogador, o guarda-redes. Visto que como ficou ja evidente, o percurso filogenetico do homem, contrariamente ao verificado nas especies que lhe sao mais proximas, impos a emancipacao do trem superior, preterindo o trem inferior, aquele que ee significativamente mais solicitado no futebol, pode afirmar-se que o futebol requisita uma funcionalidade mais ancestral. Ou seja, o futebol implica da parte dos seus praticantes, uma especificidade funcional que decorrente do processo evolutivo biologico e cultural, foi sendo preterida e secundarizada. O fato do futebol se constituir, como uma atividade, ao nivel das bases anatomicas da hominizacao, ContraNatura, torna inda mais pertinente a necessidade que o inicio da sua pratica se faca precocemente. "O futebol tem uma caracteristica muito particular, que ee, enquanto no andebol ou nas atividades que solicitam mais o trem superior, a gente esta quase predispostos para, no futebol ee precisamente o contrario." (Marisa Gomes). O fato do futebol se constituir a este nivel como ContraNatura, como salienta a nossa entrevistada, por solicitar predominantemente o trem inferior, o qual apresenta uma predisposicao evolutiva e cultural menor, torna determinante o inicio precoce da pratica de futebol, para permitir o potenciar de determinadas caracteristicas, pois como acrescenta, ee nas idades mais precoces que a plasticidade se torna mais evidente.

Importa realcar, que a tendencia evolutiva verificada na especie humana teve repercussoes muito significativas, nao somente ao nivel das alteracoes anatomicas, ja por nos salientadas, mas tambem, e uma vez que o homem ee uma inteireza inquebrantavel, a nivel da representatividade cerebral. A motricidade e a sensibilidade da mao e do pe sao, claramente distintas, encontrando-se no caso das maos, de uma forma geral na nossa especie, mais desenvolvidas. Fato que ee comprovado pelos estudos realizados nos anos 50 por W. Penfield, que atraves da estimulacao eletrica do cortex motor, e do cortex sensitivo, conseguiu comprovar que estes se encontram organizados somatotopicamente, tendo sido designados os mapeamentos do cortex motor e do cortex sensitivo, respectivamente por homunculo motor e homunculo sensitivo (Habib, 2003).

Como ee possivel observar, em termos de representatividade cerebral tanto a nivel motor como sensitivo, as maos assumem uma maior preponderancia, e desenvolvimento que os pes. EE com base nestas evidencias que sugerimos que o futebol, ao requisitar uma funcionalidade mais ancestral, "o futebol pede aos pes, aquilo que a evolucao programou para as maos" (V. Frade, 2006) pode ser considerado em parte, como um Fenomeno ContraNatura. "Futebol ee dificil, nao ee facil (...) a gente faz com os pes o que muita gente, nao pode e nao faz com as maos" (Moreira & Moreira, 2006).

Trata-se de uma suposicao, que depois de termos evidenciado que se trata de um Fenomeno AntropoSocialTotal, nao deixa de ser paradoxal. Contudo trata-se apenas de um aparente paradoxo, como de seguida procuraremos explicitar.

Nenhum comentário: