O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Relação treino-aprendizagem-hábitos

Os treinadores têm as suas ideias sobre a forma como os jogadores devem evoluir no terreno, mas é necessário que cada um saiba desempenhar a sua tarefa de olhos fechados, se for caso disso. Louis Van Gaal (1998)

Como já referimos mais atrás, o conjunto dos principios de jogo interiorizados por um dado jogador constituem os seus conhecimentos especificos relacionados com a auto-hetero interpretação de um projeto coletivo de jogo. Mas o que será que esses conhecimentos assimilados significam para o nosso cérebro? Como é que eles conseguem assimilá-los? De que forma se encontram lá dispostos e como é que são recuperados pelo nosso cérebro para manifestar uma dada identidade de jogo?

Para entender o processo extremamente complexo que leva a sua confrontação e potencial assimilação importa, em primeiro lugar, definir alguns conceitos-chave como são conhecimento, memória e aprendizagem.

Segundo Eysennk e Keane, o conhecimento pode ser considerado como a informação que é representada mentalmente num formato especifico e estruturado ou organizado de determinada forma. Contudo, importa salientar a perspectiva de Damásio de que, o conhecimento não é uma representação única da realidade, mas uma auto-hetero construção dessa realidade, a tal interpretação do objeto de que Piaget falava. Uma dada representação da realidade que para Damásio consiste num padrão consistentemente relacionado com alguma coisa, com algum objeto especifico, por exemplo, um dado principio de jogo. Essa representação existe no nosso cérebro como um conjunto de atividades neurais, que formam potenciais de atividade, que são ativados perante determinada situação consciente ou não consciente e que podem, ou não, ser imagens mentais.

Este conceito de imagem mental, que significa então algo que é construido pelo cérebro, um padrão de conexões criado através das nossas modalidades sensoriais para ser representado na mente, é atualmente aceite como o mais adequado para se reportar ao formato do conhecimento. Por sua vez, a mente é, segundo o mesmo autor, essencialmente um processo, um fluxo continuo de imagens mentais passível de ser ordenado e manipulado durante um pensamento.

Sintetizando, cada imagem mental criada por um dado sujeito/jogador tem algo de si nela e, como vimos no caso do modelo de jogo que é uma conjectura do treinador, está sujeita as interpretações dos jogadores, que por sua vez dependem das suas experiências anteriores, das suas capacidades cognitivas, das perspectivas e dos sentimentos e emoções associados aos momentos em que a confrontação se dá. Isto remete-nos desde já para a complexidade do processo de ensino-aprendizagem/treino no qual se pretende que mais de 20 jogadores tenham uma representação nunca igual (porque, como vimos, é impossivel), mas o mais aproximada possivel do futuro que se pretende levar a cabo (o jogar de uma determinada forma), no respeito pelos principios de jogo que o sustentam, não obstante o caráter, as ideias e as experiências anteriores de cada um.

No que diz respeito aos conceitos de memória e aprendizagem, eles aparecem sempre intimamente associados. Segundo Jensen a aprendizagem e a memória são duas faces da mesma moeda. Não se pode falar de uma se referir a outra. Afinal, se se aprende algo, a única prova dessa aprendizagem é a memória que, por sua vez, tem como substrato os conhecimentos.

Existem fundamentalmente dois tipos de memória: a memória explicita e a memória implicita. A memória explicita (ou declarativa) permite a aprendizagem de como é o mundo: adquirimos conhecimentos de pessoas, lugares e coisas acessiveis a nossa consciencia.

Por seu lado, a memória implicita (ou procedimental), permite a aprendizagem de como fazer as coisas: adquirimos pericias motoras ou perceptuais que não são acessiveis a consciência. De acordo com Nava a memória implicita é caracteristicamente automatizada ou reflexiva pelo que não recorre aos mecanismos da consciência, quer para a sua formação, que é mais lenta, quer para a sua recuperação.

A aprendizagem contém simultaneamente elementos explicitos e implicitos mas, por meio de repetição sistemática, memórias explicitas podem transformar-se em implicitas. Ou seja, no treino, quando confrontamos os jogadores com um exercicio propenso ao aparecimento de um dado comportamento que tem a ver com a nossa forma de jogar, estabelecemos objetivos e esses objetivos passam a figurar na sua memória explicita. Se essa exercitação se tornar sistemática e qualitativamente adequada ela, potencialmente, poderá passar a memória implicita. Se isso acontecer, desenvolve-se uma forma de atuar (jogar) cuja resposta é automática, dizemos que o fazemos sem ter de pensar, torna-se um hábito.

Um hábito é por isso, como refere, um saber fazer que se adquire na ação.

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