O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

As intenções inconscientes por trás do hábito

Chuto melhor com a parte de fora do pé. É um hábito, não é uma questão de teimosia (...) Sai-me naturalmente. É uma coisa que já vem comigo desde sempre. Ricardo Quaresma (2005)

Antes de tecer as primeiras considerações, debrucemo-nos sobre o conceito de intenção que Jacob define como uma representação mental bem peculiar, ao contrário de uma percepção que se relaciona sempre com um fato real. (...) ela implica obrigatoriamente o agente na preparação da ação. Enfim, certas intenções resultam de uma deliberação consciente prévia a ação, enquanto que outras nascem durante o fogo da ação.

Na tentativa de explicar melhor este conceito, Revoy explica que como o filósofo americano contemporâneo John Searle o divide em duas fases: a intenção prévia onde o individuo forma conscientemente o projeto de efetuar uma ação; e a intenção em ação a que se segue o momento onde a ação é concretamente executada. Como referem Sirigu e Lafargue, esta divisão não é um artificio, mas reflete mais provavelmente a estrutura da intenção.

De acordo com as experiências de Haggard e Sirigu, a execução de um gesto é em primeiro lugar iniciada pelo nosso cérebro independentemente da nossa consciência. E somente depois é que nós tomamos consciência da nossa vontade de efetuar este gesto e que nós o fazemos. Estes autores defendem que o potencial de preparação motora precede em média 350 milissegundos o instante no qual os sujeitos têm a sensação de decidir conscientemente, ou seja, o instante em que emerge na sua consciência a intenção em ação. Quanto ao inicio do movimento, ele surge 200 milissegundos depois dessa decisão consciente, pelo que parece evidente que o desencadeamento do gesto é iniciado pelo cérebro antes que a pessoa decida conscientemente de o fazer.

Para facilitar a compreensão deste fenómeno complexo, suponhamos que um jogador é confrontado com um exercicio de 1x1+goleiro, onde ele sabe que a sua função é defender a baliza condicionando o pé forte do seu oponente. De acordo com as ideias de Sirigu e Lafargue, o seu córtex frontal cria, em primeiro lugar, uma intenção prévia - posicionar-se de forma correta para o condicionar - que em consequência transmite uma ordem ao córtex parietal. Iniciado o exercicio, o córtex motor recebe a ordem de agir da parte do córtex parietal nascendo assim o potencial de preparação motora, mas cujo conteúdo preciso é em grande parte inconsciente. Até este momento, ao longo deste diálogo cortical, os neurónios trocaram informações a revelia da consciência! (...) Uma vez que esse potencial da preparação motora é desencadeado, o córtex motor informa em retorno o córtex parietal da natureza precisa do movimento que ele optou por executar por sob sua ordem (...) E é precisamente a recepção desta informação pelo parietal que gera dentro do sujeito a consciência de querer executar essa ação. Só então, após essa tomada de consciência é que podemos interferir ou vetar essa intenção em ação. É aí que começa o nosso livre-arbitrio, de que falaremos mais adiante.

Há no entanto uma questão que não ficou esclarecida: O que dita o conteúdo preciso dessa intenção em ação inconscientemente criada? Essa questão não foi explicada e é por isso uma das criticas que Pacherie teceu as experiências de Sirigu, Lafargue e Libet. Para ilustrar ainda melhor a sua posição Pacherie expõe um exemplo paradigmático: Imagine-se uma pianista profissional. Quando ele toca num concerto, as suas ações são essencialmente automáticas, não estão precedidas nem acompanhadas de intenções conscientes especificas. Isso faz pensar que ela não age livremente?

Isso é negligenciar todo o seu trabalho meticuloso de preparação, as horas incontáveis que ela passou a adquirir esses automatismos. Ou seja, não negando que as intenções em ação são desencadeadas a margem da consciência, não se pode negligenciar aquilo que foi uma prática deliberada e orientada, que resultou em hábitos, e que para nós treinadores é imprescindivel considerar.

Valdano, na sua forma muito caracteristica de se expressar, vem de encontro a esta ideia quando diz que quem está habituado a pensar não costuma ser dócil, mas acaba por se tornar apto taticamente. E quando o jogo peça algo extraordinário, saberá responder a mando da intuição, sem olhar para o banco com os olhos vazios para que o treinador lhe empreste um pedaço de cérebro. E a este mecanismo de intenções inconsciente a que vulgarmente chamamos intuição que Hogarth designou por sistema tácito, uma forma de pensamento que se produz sem a atenção consciente, que é rápida e sensivel ao contexto e que segundo ele, juntamente com Huettel, Mack e McCarthy, pode ter origem inata ou numa aprendizagem deliberada e com muita prática.

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