O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Novos hábitos... novas intenções... nova forma de jogar

Criamos hábitos com vista a manutenção da forma desportiva da equipe, que se traduz por um frequente jogar bem. (José Mourinho).

O processo que leva a construção de um jogar compreende então, como vimos, um processo de aprendizagem, uma aquisição de novos hábitos que por sua vez ditará intenções consciente e inconscientes de uma natureza muito particular - a desse futuro que o treinador pretende levar a equipe. Mas esse processo que envolve a complexa maquinaria corpo-mente dos jogadores, nem sempre é tão simples quanto parece. Como referem Goleman ele compreende muitas vezes uma dupla tarefa: desfazer hábitos indesejados e substitui-los por outros, que sejam de maior valia. Porque recorde-se que cada jogador trás consigo um historial próprio e, como já vimos, a construção que o jogador faz daquilo que percepciona é dependente, entre outras coisas, desse mesmo historial.

Segundo Goleman o córtex pré-frontal torna-se particularmente ativo quando a pessoa tem de preparar-se para evitar uma resposta habitual naquele lapso de tempo em que ele pode vetar uma intenção em ação desajustada, tal como descreveram Sirigu e Lafargue. O córtex pré-frontal assim estimulado reforça o foco do cérebro (a concentração) no que está a acontecer para que nos tais 200 milissegundos de lapso ele possa rejeitar a ação se esta não estiver conforme as intenções prévias.

Goleman realçam ainda que quanto maior for a ativação preparatória, ou seja, a formação de uma memória explicita (intenção prévia) acerca do comportamento pretendido, melhor a pessoa se desincumbirá da tarefa. Esta posição é corroborado por Santos que diz que para que um jogador tenha uma disponibilidade correta e concentrada no exercicio é necessário que ele se aperceba que a realização desse exercicio evidencia a necessidade de algo. Isto é, requerem uma noção concreta do(s) principio(s) de jogo a evidenciar naquela situação e a sua articulação com o tipo de jogo que se pretende.

Um exemplo disso é ilustrado por Meira a respeito de quando jogava no Benfica treinador por Mourinho: disse-nos [aos centrais e médio defensivo] que se o Toy [avançado em oposição] tocasse na bola, tirava-nos aos três da equipe (...) o treino foi durissimo, mas o Toy não tocou na bola. No jogo seguinte, com o Farense, ganhámos 1-0 e o avançado deles (...) não tocou na bola. Aprendemos a lição. Para além da exposição clara dos objetivos em cada exercicio, um outro elemento afigura-se como essencial no decorrer do mesmo - o feedback do treinador e ou dos colegas. Na perspectiva de Goleman, é preciso dedicação e lembretes constantes para manter o foco na reversão desses hábitos.

Então, para que exista um processo de reversão/aquisição de hábitos é crucial encontrar um caminho certo. Para Goleman, sempre que as pessoas tentam mudar seus hábitos de pensamento ou de ação, precisam reverter décadas de aprendizagem que residem em circuitos nervosos intensamente utilizados. Este autor refere ainda que aquisição de novos hábitos reforça certos caminhos entre os neurónios, e pode até estimular a neurogénese. A nova maneira de pensar, sentir e agir parece pouco natural a principio (...) Em termos neurológicos, forçamos o cérebro a percorrer um caminho menos utilizado. Mas adianta também que é possivel melhorar tomando três providências: tomar consciência dos maus hábitos, praticar deliberadamente alternativas mais adequadas e ensaiar o novo comportamento sempre que houver oportunidade - ou seja, até dominá-lo completamente, por meio de aprendizagem implicita.

Os estudos demonstram que o novo comportamento exige, a principio, um esforço muito grande do cérebro, nomeadamente do córtex pré-frontal. A medida que o novo comportamento é aprendido, verifica-se, através da TEP (Tomografia por Emissão de Positrões), que menos áreas do cérebro são utilizadas para o desenvolver. Ou seja, o cérebro torna-se mais eficiente e responde mais rapidamente já as suas intenções inconscientes desencadeiam-se em consonância com aquilo que se procurou nas longas horas de treino, tal como ilustrou Pacherie com o exemplo da pianista.

Mas isto poderia suscitar-nos o problema de o jogo nunca reproduzir fielmente as mesmas situações do treino e vice-versa, da mesma forma que o jogar futebol não é a mesma coisa que tocar piano. E mesmo no treino, em cada repetição da mesma situação pode haver diferenças por pequenas que sejam, que decorrem do fato de o futebol ser uma modalidade aberta. Porém, o nosso cérebro guia-se essencialmente por padrões de representação que o cérebro reconhece quase sempre de forma inconsciente, para poder reagir. Mas para que no jogo haka um elevado grau de identificação com determinados padrões de situações é preciso que os jogadores já os tenham experimentado no treino, já que todas as experiências de visa são contextualizadas graças a elementos sensoriais.

Mourinho disse, a respeito do seu processo de treino, que é tudo uma questão de comportamentos! (...) Criamos hábitos com vista a manutenção da forma desportiva da equipe, que se traduz por um frequente jogar bem. Ou seja, o que este autor defende é, claramente, a qualidade na prática, a enfatização exclusiva daqulo que tem a ver com a sua forma de jogar. Desta forma, será fácil aos jogadores identificar os tais padrões e agir em conformidade. Damásio sustenta também esta postura ao afirmar que quanto mais vivenciarmos situações relacionadas com um certo objeto (p. e. principio de jogo) mais facilmente percebemos que podemos atuar sobre ele porque as várias regiões do cérebro acedem mais facilmente a imagem dessa repetição sistemática, do treino e da aprendizagem, ela permite libertar a consciência dos jogadores para um nivel superior (...) entrou para o subconsciente [os principios], já não pensamos naquilo, e estamos a libertar-nos para uma coisa mais complexa.

Resumindo, o processo de reversão/aquisição de hábitos, que tem a ver com uma determinada forma de jogar, requer por isso uma sistematização muito grande. Como adianta Valdano, como o futebol é um jogo de hábitos, o tempo é um fator importante. Um clube é uma familia onde se desfruta e carece de continuidade. Primeiro para construir uma forma de jogar e, posteriormente, para a manter. Porque uma vez aprendidos os novos comportamentos, eles devem continuar a ser exercitados, caso contrário, arriscamo-nos a um retorno aos velhos hábitos. Da manutenção do conjunto de hábitos que modela a forma de jogar de uma equipe ao longo de uma época e sem grandes oscilações, resulta a tal manutenção de forma desportuva de que Mourinho falava.

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