O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Férias de si mesmo

O texto abaixo foi retirado do site http://www.marioedianacorso.com, de autoria do psicologo e psicanalista Mario Corso:

Férias de si mesmo

Uma das idéias mais comuns é que somos todos estressados, estaríamos sempre querendo esquecer de nós e da vida que levamos. Nosso sonho é chutar pra cima tudo que nos incomoda e poder ficar vendo a grama crescer. No entanto, se assim conseguimos um alívio do cotidiano, seguimos sendo nós mesmos. Isso é algo a ser levado a sério, afinal, tem gente que nem sai de férias por que sabe que vai junto, sabe que é um chato incorrigível e então o melhor é ficar no trabalho mesmo.
No meu entender, entre as tantas coisas que o futebol proporciona, a melhor é uma legítima, embora breve, férias de si mesmo. Não estou falando da paixão clubística, mas sim de uma de suas possibilidades: a de assistir um jogo com estádio cheio.
Não funciona da mesma maneira para todos, alguns pegam a bandeira e quando saem de casa já não são eles. Outros, de menos fé, precisam entrar no estádio-templo, sentir o ruído e o colorido de seu time para esquecerem que existem. Fundido na multidão, agora um a mais no estádio, restam poucos resquícios da personalidade original, ele é todo camiseta e bandeira. Ele que é todo duro não resiste à charanga, já nem é mais batida de samba, é uma música tribal que lhe fornece a pulsação. No gol ele vai abraçar um irmão ao lado que não conhecia, que agora é íntimo e que talvez nunca mais venha a ver. O seu nome não importa, só importa um clube, uma paixão do qual se pode perguntar tudo menos das razões desse amor. Em cima de uma escolha arbitrária, afinal nada distingue na essência um time do outro, naquele momento toda a sua alma é o destino do clube.
Nosso tempo é tão narcisista, tão individualista, que não percebe as paixões que não cabem nesse ideal. A leitura que fazemos desta vivência coletiva é pobre, seria como uma válvula de escape de formas primitivas do ego soterradas pelo jugo da civilização. Ou seja, ainda é o eu que esta lá, numa forma mais rude, mais arcaica, usando do anonimato da massa para expressar seus piores instintos. Isso não resiste à menor verificação, não há nada de primitivo, de interno, o que acontece é uma possessão, alguém deixa de ser para que aquilo maior exista.
Um domingo de sol no estádio é a negação das crenças do mundo moderno onde o que conta é o indivíduo. Um Maracanã cheio sempre vai ser de alguma forma subversivo. Quando os hooligans se descontrolam (se é que são controlados em algum momento) e saem as ruas quebrando tudo não é um ataque a civilização, é um ataque à cultura do indivíduo, eles querem é seguir sendo massa. Quando a força pública fechou a Mancha Verde (não sem razão diga-se), um dos seus líderes perguntava: o que nós vamos ser agora? Era dali que muitas pessoas tiravam a sua maior significação. As torcidas organizadas são signos da falência das formas tradicionais de dar pertença.
O resultado do jogo importa mas importa menos. Mesmo que venha a sofrer é muito mais do que a sua alma que está sofrendo, é uma alma coletiva e imensa que paira sobre tudo, ele sofre mas ainda está de férias e arrisco dizer que é melhor esse sofrimento do que o da sua vidinha. É uma derrota ou mais do que isso, uma desclassificação, mas ele não esta sozinho tem alguém ao lado que compreende tudo o que ele esta sentindo, que não precisa dizer uma só palavra para seus espíritos estarem em comunhão.
É hora de ir para casa, mas as férias não acabaram, a saída do estádio é ruidosa, é preciso aproveitar os últimos momentos pois já há sinais que a dose pode acabar. Aquilo que o estádio encerrava desborda. Ainda resta o ônibus, ou melhor ainda, uma longa caminhada com uma massa amiga. No trajeto não há mulher que fique sem adjetivos e provocação sem resposta. Mas o gás do estádio vai dissipando, as ruas vão tragando uns e outros e os tantos já são tão poucos. Passo a passo, o próximo começa a tornar-se estranho, as conversas vão rareando e ele já está sozinho. Pior do que isso: ele é ele de novo. Quando chega em casa cansado, a mulher, que é muito sensível a tudo que acontece sem ela, vai lhe dizer que acabou o leite e que o caçula está vomitando. Nosso amigo sente um gelo e sabe que a segunda-feira começou.
Amanhã tem batente, começa com uma reunião sobre qualidade total, e se a memória não falha tem uma palestra para falar como a auto-estima pode mudar a sua vida e lhe ajudar na motivação ao trabalho. Vão lhe dizer que ele estava completamente errado no domingo. Não assim diretamente, mas o que o palestrante vai lhe dizer é que o máximo de valor que alguém pode ter é em ser um indivíduo autoconfiante e auto-suficiente. Embora possam e devam haver esforços solidários o homem se realizaria de verdade é sendo ele mesmo, sendo forte e desenvolvendo o seu estilo pessoal, aquilo que o distinguirá de todos os outros, aquilo pelo qual só ele será lembrado. Nosso amigo é desconfiado, mas volúvel, já pensa numa promessa para o Menino Jesus de Praga, do qual é devoto, lhe ajudar a ser mais autoconfiante.
E se não der certo não faz mal, domingo tem decisão e a copa já esta chegando mesmo. Ele espera se sentir brasileiro como na última copa. Como é bom e como é difícil se sentir brasileiro, só na copa ou uma vez num sete de setembro, ele era criança, levava uma bandeira, mas é confuso não sabe se aconteceu mesmo.

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