O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

domingo, 9 de maio de 2010

Trecho da entrevista de Marisa Gomes

trecho da entrevista da professora marisa gomes.

Ou seja, o talento ee sobretudo construcao, ou sobretudo, tem muito de construcao.
O talento ee uma predisposicao que se vai desenvolvendo ao longo do tempo porque o talento pode ter uma predisposicao mas se nao se manifestar, nao ee talento. Vemos muitos jogadores que acabam por ter boas capacidades mas que com o tempo deixam de as manifestar. Se deixam de as manifestar, deixam de ser talento. Agora, uma das caracteristicas que o talento tem de ter ee a singularidade. Sabemos e reconhecemos que aquilo que se faz com que um seja melhor que o outro ee qualquer coisa que ele tem que os outros nao tem. Um central para ser melhor que o outro tem que ter qualquer coisa que o outro nao tem. O talento marca-se pela singularidade. E essa singularidade nao ee igual para todos. A singularidade de um ponta de lanca que tenho ee totalmente diferente da de outro. No entanto, sao dois talentos diferente e ee ai que nos temos de gerir. Para que? Para promover um meio e uma evolucao, uma formacao que permita que cada um destes talentos se desenvolva. Porque dentro da posicao, do futebol e do jogo existe a necessidade de se manifestar e de se interagir de determinadas formas. Agora, o treinador ee que tem de ter esse trabalho. Num meio como o jogo de futebol, isso ee determinante.

E se partir do principio que nao tem muito a afazer, no fundo nao esta a fazer nada, porque nao acredita naquilo que faz.
Pior do que nao estar a fazer nada, esta a estragar! Esta a estragar! Mas isso tambem acontece no contrario porque vemos miudos em escaloes mais baixos que tinham um potencial enorme e que ate o conseguem manifestar por diversas razoes mas depois acabam por desaparecer. Porque? Porque temos de ver a evolucao do jogador como a evolucao das especies. A analogia que eu faco ee essa. EE que as especies vao evoluindo ao longo do tempo mas esse talento tem que ter determinadas condicoes para se manifestar. E nos sabemos que a extincao de varios animais aconteceu quase sempre devido a uma questao: o estarem com determinadas caracteristicas demasiado adaptadas as coisas (ao contexto). Entao, a minima variabilidade desapareceram. Acontece o mesmo com o talento no futebol. Se o jogador for um talento e o manifestar apenas como regularidade, ao mudar o contexto (e as vezes basta mudar de treinador) e mudando de solicitacoes, o jogador acaba por morrer.

O talento tem de ser uma realidade potencial, porque se desenvolve, ee uma realidade plural, porque se expressa de formas diversas e alem disso, tem de contemplar a criatividade, nao pode ser um talento formatado...
A criatividade tem de fazer parte do talento. Eu tenho muitas duvidas em relacao aqueles miudos que jogam apenas num registo. Falo em miudos porque em cada idade a manifestacao do talento ee diferente, face as caracteristicas, face as debilidades, face a maturacao, face a tudo isso. O que ee importante ee distinguir neles qualquer coisa que eles tem e que com o crescimento nao desaparece. Por isso ee que as vezes vemos miudos que nas escolas e infantis sao muito rapidos e que se dizem talentos (e que suportam o jogo nisso), suportando o jogo nisso e com o crescimento a velocidade relativiza-se e deixam de ser talentos. Portanto, o talento ee uma predisposicao que tem de se manifestar. Agora, se sou um talento com determinadas caracteristicas preciso de condicoes para o desenvolver. Imagina: se sou um animal adaptado para estar em climas quentes e se vou para um clima frio, acabo por morrer. EE a mesma coisa com os jogadores e as vezes basta transitar de um escalao para o outro e sobretudo, mudar de treinador. Porque os talentos nao se restringem aos jogadores ee tambem ao treinador. O treinador deve reconhecer a singularidade dos jogadores, fazer com que as relacoes entre os jogadores se manifestem de forma a que esse talento se manifeste e cresca! (E potencie a equipe). Devido aquilo que digo aos meus miudos: "nao adianta ter talento", ele tem de se mostrar, tem de ser emergente.
O potencial ee isto mesmo: ee aquilo que estamos a contar que aconteca porque sabemos que existe qualquer coisa. Mas se nao emergir, se nao se expressar, nao tem qualquer tipo de validade.

Tem bases para isso... dentro do jogo ou dentro das linguas... (exatamente...dentro de tudo...) Dentro de determinada qualidade no caso do jogo, variar dentro do jogo... o problema ee que muitas vezes confundem-se as coisas...
Costumo dizer o seguinte: nos, humanos, somos expressao daquilo que somos - o lado das caracteristicas, da genetica, do biologico - e depois, em cada passo que a gente da, em cada passo mesmo, vamos mapeando. Nos somos um mapa daquilo que vivemos e o que vivemos nao ee so o que ee sentido pelo corpo. Por exemplo, eu nunca fui as Maldivdas mas tenha uma representacao do que sao as Maldivas. Agora, se eu for la, a minha representacao das Maldivas vai mudar. O jogo ee a mesma coisa.

O jogo tem que ser mapeado e o exercicio se calhar...
O processo de formacao tem que ser um mapeamento. Agora, o mapeamento sobretudo ate aos 14 anos tem que ser num sentido de privilegiar uma variedade cultural. O que ee que ee isto? (Cultural dentro do jogo) Sem duvida! A variabilidade cultural... o jogo tem que ser uma variabilidade cultural.

Exato... eu penso que muitas das vezes a tarefa mais complexa e mais dificl de um treinador ee procurar, atraves dos exercicios escusar-se. Ou seja, evitar ao maximo atraves dos exercicios que vai criando, para aqulo que pretende, participar no treino e a intervencao dele fazer-se quase so com exercicios, quase nao tem necessidade de intervir, deixa-lo jogar...
Mas eu acho que o treinador tem de intervir durante o treino. Agora, o jogo, o exercicio tem que ser entendido como um nicho ecologico. Isto ee, temos um conjunto de jogadores e vamos promover um nicho ecologico que permita desenvolver esta variabilidade cultural, que ee o nosso jogo. Quando digo jogo ee o jogo que resulta dos jogadores estarem em ligacao entre eles. Depois, os exercicios tem que ser estimuladores de qualquer coisa. Quando estive com os mais pequeninos, miudos com 4/5 anos e adorava trabalhar com eles. Porque!? Porque a minha intervencao no jogo tinha que ser atraves de jogo, atraves da bola. E aprendi imenso com isso...

...e se calhar ai a intervencao do treinador passa por faze-los vivenciar, e se calhar nem tanto no intervir no sentido da oralidade de... (nao pode ser atraves da oralidade...) ee eles fazerem e criarem propensoes e determinados contextos que lhes permitam vivenciar aqulo que ele pretende e dai a complexidade de criar exercicios...
Isso das propensoes tem de ser de cima a baixo. Tem que ser sempre e a todos os niveis. So que com esses miudos os conceitos sao nossos e como os miudos (como ja dissemos) nao tem capacidade de abstracao, isso ee otimo porque so fazendo acontecer ee que a coisa resulta...

EE otimo, mas acaba por ser uma faca de dois gumes, porque tanto pode dar para o otimo como pode dar para o pessimo, depende do contexto a que eles forem submetidos desde idades muito precoces. La esta a absorcao deles ee menos seletiva.
EE otimo para um treinador de qualidade. Porque eu prefiro trabalhar com aqueles miudos. Porque? Porque nao tenho que desmontar conceitos. (sao mais genuinos) Sao mais plasticos. Costumo dizer que os miudos pequeninos sao mais plasticos porque nao sao mais adaptaveis. Eu punha miudos de 4/5 anos a jogar com duas balizas laterais e havia circulacao de bola. Agora, nunca falei em circulacao de bola porque eles nem sequer sabiam o que era a palavra circulacao. Mas fazia, jogavam, viviam. Do mesmo modo que para intervir nesse jogo, tinha de ser consoante aquilo que eu queria. Por exemplo, se queria que eles desaglomerassem. A aglomeracao nestes miudos resulta de que?! Da unica coisa concreta que existe para eles. A unica coisa que existe concreta no jogo ee a bola... e o jogo para eles ee a bola. E portanto, eles jogam. Como? Com a bola. Eles nao se ligam aos colegas, nem ao adversario e ate a baliza as vezes nao existe para eles. E por isso, este lado da inexistencia de conceitos ee que os torna tao plasticos. E quando falo em conceitos nao ee so em termos conceituais. Entendo conceito em termos conceituais e tambem em termos corpus, na capacidade de realizacao.

O mapear desses conceitos passa pela interiorizacao pela corporalizacao desse... da somatizacao.
Exatamente! A prova disso sao os miudos pequeninos de 4/5 anos. Essa mapeacao dos conceitos nao resulta so da cabeca para os pes, tambem resulta dos pes para a cabeca. Sao esses miudos que pomos a jogar desde tras. Temos ee que faze-lo colocando a bola em determinadas condicoes. Falavamos um bocadinho dos contextos e por exemplo, nesses miudos tinha alguns que nao gostavam de jogar. E nao gostavam de jogar porque?! Porque tinham mais dificuldades. O que ee que eu fazia?! Em condicoes em que ele estava quase sempre sozinho, porque nao lhe passavam a bola e interagia pouco no jogo, metia a bola nele, sobreestimulava-o, fazia com que o contexto fosse propicio a sua participacao. Ainda que ele inicialmente cometesse muitos erros. Mas com o tempo, com a continuidade, as coisas acabam por emergir.

Ha uma necessidade de os fazer sentir ainda mais, porque eles ja o tem, e para substituir, por assim dizer, eles tem...
...Eu nao queria que ele substituisse, queria que ele tivesse mais essa opcao. Como que ee que tive que fazer?! Tive que fazer duas coisas.
Primeira: dificultar-lhe o puxar a bola sempre para dentro, ou seja, as vezes em que o fazia, nalgumas perdia a bola e isso comportava algum risco. Do mesmo modo que fazia com que houvesse sempre um apoio na lateral. Se quero dizer ao meu jogador para ela abrir mais vezes por fora e nao ha um extremo viavel para receber a bola, este contexto ee propicio!? Nao ee propicio. Portanto, isto aqui ee decisivo. Um treinador tem que ser um alquimista! Para criar estes contextos. Mas para criar os contextos ee preciso saber os objetivos. EE para tornar propicio a que? A que?! (Uma concepcao que ee quantificada a priori, e nao.) E tendo em conta a evolucao do processo. Porque o lado emergente nao ee so do jogador. EE do jogador, da equipe e ao longo do proprio processo. Existem varios planos ou varios niveis desta emergencia. A realidade ee isso mesmo. A realidade ee aquilo que emerge mas aquilo que emerge ee tambem aquilo que a gente consegue ver dessa realidade e portanto, o jogo ee isso tudo.
Eu vou ver um jogo e tu vais ver o mesmo jogo. Para mim ee uma coisa e para ti ee outra. Face a que? Face ao teu mapeamento e face ao meu.

Muitas vezes, no treino sinto que o miudo vai a fazer uma coisa fantastica, mas no entanto, nao saiu. Nao sai, mas aquilo, acho que ee... tem que se dar valor. (exato) Porque aquilo mais tarde vai sair. E ha pormenores desse tipo que se calhar ninguem detecta, que sao mesmo fundamentais, e ee isso que os vai distinguir. Mesmo eles errando, se calhar se dessemos um reforco negativo, ele nunca mais o iria fazer.
Ou entao tens de fazer o seguinte: tens de promover um contexto em que isso aconteca muitas vezes. Criar um contexto. Por isso ee que falo em alquimia porque tenho, por exemplo, um ponta de lanca cuja singularidade ee a sua capacidade de rematar a baliza. Esse ponta de lanca... (ele nao tem de perder isso, ele tem ee que ganhar outras coisas) Exatamente.
Agora, como ee que eu vou fazer? Ponho tres defesas, ponho dois defesas, ponho a jogar contra a equipe mais forte ou na equipe mais forte?! Dependo do objetivo, depende da necessidade dele e depende de como a gente vai revelar isso no desenvolvimento coletivo. E este lado individual e coletivo nao se separam. Sao comuns. Sao comuns! Se estiverem contextualizados sao a mesma coisa. Este individual nunca deixa de ser coletivo nem este coletivo deixa de ser individual. Por isso ee que falamos da variabilidade cultural. As pessoas dizem: ah, tem que ser criativo ou tem de ser diferente. Nao tem que ser diferente tem que ser ee uma variabilidade cultural. Tem que haver um lado aberto para haver um crescimento do treinador. Porque o treinador tem de aprender com os jogadores. (exatamente). E os jogadores tem que aprender com o treinador. Como ee que eles aprendem com o treinador? Primeiro, ee atraves do exercicio. Faze-lo de modo a provocar determinadas coisas e leva-lo a ter sucesso e faze-lo creser com isso, mais cedo ou mais tarde. E depois, ter capacidade para ver se nao esta a acontecer isto, na propria competicao ou em situacoes de treino, e ajustar. EE saber, por exemplo, que o meu pivot nao esta a ter sucesso porque esta a ir muito para frente e entao, meto um pivot, que naturalmente tendo a jogar mais atras. Atraves desta escolha e nesta situacao estou a influenciar nao so este jogador mas e sobretudo o desenvolvimento coletivo.

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