O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

domingo, 9 de maio de 2010

Como decidimos, como jogamos

Texto publicado por Marisa Gomes em sua coluna no zero.pt, basta ir nos favoritos para encontrar o link.

A necessidade de decidirmos sistematicamente faz com que na maioria das vezes o façamos sem consciência daquilo que estamos a fazer. As decisões mais simples e as actividades mais rotineiras são aquelas que ocupam a maioria do nosso quotidiano e por isso, são as que nos definem. Contudo, não merecem a devida importância da nossa parte porque decidimos e pronto. Sem grandes reflexões, sem uma procura sistemática de interpretação não nos apercebemos da complexidade da nossa mente. No jogo essa complexidade aumenta na mesma proporção que nos ajuda a perceber como decidimos. O que nos permite fazer com que os outros decidam de forma mais eficaz possível.

Analisar um jogo permite-nos reconhecer um padrão de funcionamento das equipas resultante das interacções individuais dos jogadores. Ao observar o Barcelona vemos que se identifica pela forma como gosta de ter e conservar a bola para se superiorizar ao adversário. Do mesmo modo que defende e transita de acordo com esta dominância. Quer ter a bola, quer circulá-la, quer usufruir do prazer de a dominar em todo o terreno. A predisposição dos seus jogadores para a receber é uma característica que se reconhece em todos muito antes da bola chegar. O que faz com que no momento da sua perda procurem ganhá-la o mais rapidamente possível através do jogador mais próximo da bola e da rápida aproximação dos demais. No caso de não a conseguirem recuperar, fecham através de uma oscilação concordante com a bola (e o seu deslocamento). Com uma solidariedade colectiva que se reconhece na proximidade afinada com que o fazem. Fazem-no com uma naturalidade que lhes permite ganhar a bola mais cedo ou mais tarde. E quando isso acontece, procuram jogar com a segurança que lhes permita desfrutar da bola, como que a compensar o tempo que estiveram sem ela. Esta funcionalidade colectiva resulta das interacções individuais dos jogadores. Do modo como decidem. As escolhas convergem para esta funcionalidade colectiva e confere-lhes uma afinidade que emociona os que gostam do bom jogo de futebol. Pelo sincronismo, pela entrega, pelo prazer das escolhas naquilo em que acreditam. No que fazem. No que jogam. O que se manifesta no modo como se sentem uns nos outros.

Apesar da previsibilidade colectiva reconhecemos uma variabilidade na concretização das decisões que os tornam mais eficazes. O jogar em segurança na transição ofensiva tanto acontece através de um passe curto para um apoio mais recuado, como acontece através de um passe em profundidade para o Messi, como também acontece através de um drible no sentido contrário à pressão adversária. A diversidade e criatividade é isto. A concretização do princípio colectivo através da selectividade individual adequada às circunstâncias. Apesar de ser fácil reconhecer os jogadores pelo modo como concretizam as escolhas. O Xavi adora ganhar a bola e conservá-la sem esforço através de um passe ou até de uma simulação de corpo com a mesma facilidade com que emociona com os seus passes em profundidade (com toda a segurança!). A disponibilidade mental para este tipo de decisões resulta de um trabalho, ou seja, é construído. A capacidade de concretização do jogar em segurança é treinada. Apesar de parecer um mistério perceber como conseguem tomar decisões geniais em escassos milisegundos, transcendendo as sensações, instintos e emoções, sabe-se que é possível. Criando soluções que ultrapassam os aparentes limites circunstanciais e que vencem muitos jogos e o seu desenvolvimento. De acordo com Jonah Lehrer, existe uma região no cérebro responsável por isso, o córtex pré-frontal. Segundo este autor, “constitui a única região do cérebro capaz de aprender um princípio abstracto – neste caso os princípios que definem a equipa que referimos anteriormente – e aplicá-lo num contexto invulgar, surgindo com uma solução totalmente inovadora”. Ou seja, a capacidade de criar novos espaços, de promover novas soluções no contexto resulta de uma sentimentalidade (emocionalidade) colectiva. As relações das pessoas assentam nisso. A maior ou menor proximidade define-se no modo como se sentem nos outros e portanto, como crescem individualmente na concretização dos princípios colectivos.

Apesar de parecer simples, a criatividade selectiva (na concretização de um princípio colectivo) resulta quando o treino se processa com a emotividade que o jogo comporta. Ou seja, os problemas e as dificuldades têm que ser sentida para que o jogador tenha capacidade para hierarquizar rapidamente o que fazer e ter capacidade para se pre«ocupar» com o modo como o vai concretizar. Quando os contextos são fechados (só permitem a feitura de uma coisa e não obrigam a ter critério) ou estão cheios de «ruído» de informação (como os gritos: «passa», «remata», «leva a bola») da envolvência isso não é possível. De acordo com os estudos do referido autor, isto faz com que o jogador fique «fechado» ou seja, foca-se em algo que já lhe é dito. Para além de que o obriga a estar mais consciente, impedindo-o de concretizar as suas escolhas de forma mais espontânea, solta e eficaz. O treino faz com que a mente processe as suas escolhas antecipadamente. Quando se joga. Quando se criam contextos nos quais reforçamos projecções da forma como se resolvem os problemas. Quando se orienta para a aquisição inconsciente de uns nos outros. Quando se gera um contexto positivo daquilo que acontece através de uma orientação (contínua) daquilo que se pretende. Daí que aprender custe. Daí que o jogo seja a premissa fundamental para se jogar.

Ainda que se perca algumas vezes, como aconteceu com o Barcelona contra o Inter. Mas as razões não são vazias. Se estivermos atentos, encontramos resposta num livro genial do autor referido anteriormente, Jonah Lehrer: «Como decidimos». Apesar de não falar em jogo de forma directa, ensina-nos a jogar e como ensinar a jogar. As razões da derrota do Barcelona contra o Inter também não se encontram de forma objectiva. É um desafio encontrá-las. Em contrapartida, vou tentar dar-lhe a resposta no próximo artigo.

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