O animal satisfeito dorme (Guimarães Rosa)

domingo, 1 de novembro de 2009

O futebol brasileiro é um futebol técnico. Será?

Quantas vezes não escutamos essa frase ecoar dentro de nossos ouvidos como uma justificativa para o sucesso mundial do futebol brasileiro?

Os especialistas explicam que nosso futebol é bom porque a técnica do jogador brasileiro se sobressai a qualquer obstáculo. Será verdade?

Bem, precisamos definir primeiramente o que se entende por técnica. No dicionário Aurélio encontremos a seguinte definição:

s.f. Conjunto de métodos e processos de uma arte ou de uma profissão: técnica cirúrgica. / P. ext. Maneira (hábil) de agir, método.

Um tanto amplo esse conceito, né? Precisamos o encaixar melhor no futebol.

Para tanto, recorreremos as definições e conceitos de Júlio Garganta:

Nos Jogos Desportivos Coletivos, as técnicas não se restringem a movimentos específicos.
Constituem acções motoras, formas de expressão do comportamento, realizadas no sentido de solucionar os problemas que as várias situações de jogo colocam ao praticante.

Através da técnica o jogador procura optimizar as condições de realização de determinada tarefa de modo a conseguir o máximo rendimento desportivo. Neste sentido, trata-se de uma motricidade especializada e específica de uma modalidade desportiva que lhe permite resolver duma forma eficiente as tarefas do jogo.

De facto, grande parte dos escritos relativos ao Futebol denotam uma concepção restritiva da técnica, porquanto a circunscrevem ao conjunto de movimentos efectuados com a bola (passe, remate, drible, recepção, etc.), ignorando as atribuições técnicas que competem aos demais jogadores, que não ao portador da bola, encontrem-se eles na fase defensiva ou ofensiva.

Contudo, as acções de jogo, impliquem ou não a presença directa ou próxima da bola, apelam a requisitos técnicos. Uma corrida rápida, uma desmarcação, uma marcação a um adversário directo, são técnicas utilizadas no jogo de Futebol, o que faz com que este conceito possua uma abrangência maior do que aquela que usualmente se lhe atribui.

Acresce que o uso do termo técnica tem assumido, no contexto específico do Futebol, contornos sui generis. Quando se recorre à expressão: "o jogador X tem técnica", é comum associar o vocábulo à expressão qualitativa de sinal positivo da acção, perspectivando-a à margem do contexto que motivou a suaexpressão. Ou seja, um jogador "tem técnica" apenas quando denota uma proficiência que se coadune com determinados preceitos de natureza mecânica.

De acordo com este ponto de vista é privilegiada a dimensão eficiência (forma de realização) da habilidade, independentemente das dimensões eficácia (finalidade) e adaptação, isto é, do ajustamento das soluções e respostas ao contexto.

Técnica e táctica condicionam-se reciprocamente, formando uma unidade, pelo que qualquer elemento técnico só adquire sentido se for qualificado e avaliado em função da natureza específica do confronto desportivo.

Assim, no âmbito dos JDC a técnica não constitui uma finalidade, devendo antes ser considerada um meio de jogo e utilizada de acordo com as exigências tácticas colocadas pela competição.

De acordo com estas concepções, que se enquadram numa outra perspectiva, a técnica, entendida na sua acepção dinâmica, adaptativa e relacional, constitui o conjunto de aprendizagens motoras que permitem a um praticante utilizar as suas próprias capacidades em relação com as situações externas: terreno, adversários, etc. , com eficácia máxima para o jogo.

Contudo, a técnica, entendida como o conjunto de procedimentos utilizados para resolver da forma mais efectiva, racional e económica, os problemas colocados pela competição, não
assume idêntica importância em todas as modalidades desportivas, recebendo, em cada uma delas, uma afectação vectorial diferente.

No seu livro, La sintassi dei Cálcio, Accame estabelece uma homologia entre Futebol e linguagem e preconiza o estudo da dimensão sintáctica do jogo de Futebol, enquanto condição sine qua non de uma adequada formação da competência futebolística. Refere ainda que, tal como na comunicação humana, a palavra isolada não constitui um processo
efectivo de significação, também no Futebol um movimento operativo isolado uma técnica - adquire sentido na medida em que se considera o contexto que justificou a sua exteriorização.

Convém, por isso, ter presente que, como refere Riera, nos desportos de oposição, a estratégia, a táctica e a técnica estão intimamente relacionadas. Elas não implicam três acções distintas mas três formas diferentes de contemplar a mesma acção.

Durante uma partida surgem inúmeras situações cuja frequência, ordem cronológica e complexidade não podem ser previstas antecipadamente e que reclamam, ao nível do comportamento dos jogadores e das equipas, um elevado e flexível espectro adaptativo.

Neste sentido, a adaptação produz-se na presença de um quadro específico de competências do sujeito em face das alterações do envolvimento.

Uma das facetas reveladoras da competência de um jogador de Futebol, prende-se com a sua aptidão para seleccionar os recursos motores mais adequados no sentido de responder à configuração do jogo num dado instante, e com a capacidade de os utilizar no momento de materializar a acção.

Como tal, a competência do jogador não decorre dum entendimento mecânico que se restringe ao saber como executar determinadas técnicas. No sentido de seleccionar e executar a resposta motora mais adequada ao contexto que a reclamou, o jogador deve prioritariamente saber o que fazer e quando fazer.

Os factores de execução são assim determinados por um contexto de oposição e cooperação, pelo que a proficiência técnica decorre deste compromisso. Assim, porquanto dão suporte às acções de jogo, as técnicas específicas do Futebol não podem situar-se fora do quadro que as reclama.

Na tentativa de ultrapassar alguns equívocos, Teodoresco preconiza que a técnica nos jogos desportivos deve ser perspectivada como parte integrante da táctica individual, entendida como o conjunto de acções individuais utilizadas conscientemente por um jogador nas suas interacções com os seus colegas e adversários. Na medida em que o jogador não executa isoladamente os procedimentos técnicos, mas acções de ataque e de defesa, as acções técnicas devem integram-se nos saber-fazer tácticos.

De acordo com este entendimento, os procedimentos técnicos devem estar integrados na estrutura específica de jogo, desenvolvendo-se sob a égide do pensamento táctico, na medida em que é o raciocínio táctico que confere conteúdo aos procedimentos técnicos.

Pode dizer-se que um jogador domina determinado procedimento técnico apenas quando ele for capaz de o utilizar numa situação de confronto desportivo, com um adversário de nível semelhante ou superior ao seu.

Quer isto dizer que uma ajustada tomada de decisão é, pelo menos, tão importante quanto uma boa técnica.

Deste modo, no Futebol como noutros JDC, a execução das acções motoras, longe de se restringir ao âmbito mecânico e energético, é essencialmente ditada pelas tomadas de decisão, formuladas a partir de soluções mentais adoptadas em função de contextos variados.

Na medida em que o Futebol reclama a utilização de habilidades abertas, quanto mais ampla for a gama de recursos corporais ou motores (técnicas) de um jogador mais elevado será o seu potencial para gerar soluções eficazes no contexto do jogo.

Embora salvaguardando a importância relativa dos estudos mencionados, o Futebol, não parece viável determinar um modelo geral de técnica que seja "boa" ou "má" a partir de preceitos mecânicos pré-fixados. Não obstante a execução de uma determinada técnica se aproxime mais ou menos de um modelo teórico ideal, a sua característica fundamental é permitir a interacção eficaz entre o jogador e as situações de jogo.

As situações que ocorrem num jogo de Futebol, com excepção dos designados lances que representam as fracções constantes do jogo, também denominados lances de "bola parada" (livres, cantos, pontapés de baliza), fazem com que a execução das diferentes técnicas utilizadas pelos jogadores se processe, não em condições estandardizadas mas, pelo contrário, em contextos imprevisíveis de grande variabilidade.

A capacidade de jogo é uma capacidade complexa que combina tacticamente uma grande diversidade de capacidades psicológicas e físicas, assim como um grande número de habilidades técnicas, com acções de jogo complexas.

A actividade empreendida pelos jogadores deve, a todo o momento, estar em consonância com as características das situações às quais pretendem dar resposta, o que faz com que a selecção e a execução das diversas acções a desenvolver sejam essencialmente ditadas por imperativos de ordem estratégica e táctica. Neste sentido, como refere, as acções técnicas estão estreitamente associadas à componente táctica, condicionando-se e influenciando-se reciprocamente.

Assim sendo, o critério mais importante para perspectivar e avaliar os quesitos técnicos decorre da sua efectividade no jogo, portanto, da sua conformidade às tarefas tácticas que os reclamam.

Cada um que pense o que quiser agora.

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